pedra, papel, tesoura
Há algumas coisas que tem gosto de alegria primitiva. E devem mesmo ser.

teste 1 de gravar o texto pra minha amiga Bia. caso vc prefira minha voz ao invés da dos seus divertidamentes, ta aí! no entanto, leia as legendas que essas eu não narrei :)
Eu lembro o prazer que eu sentia em “ter um toque” com alguém, e o deslumbre ao descobrir que algo tão íntimo e singelo fosse permitido assim, gratuitamente. Todo momento de encontro era oportunidade para marcar nossa ensaiada confidência secreta, mesmo que este jogo de sinais com as mãos fosse o menos engenhoso possível e nada acrescentasse de criatividade. A pura cópia ultrapassada de um tapinha, soquinho e mãos ao ar já eram suficientes para um júbilo na alma, um doce sabor de pertencimento.
Penso muitas vezes nos nossos humanos ancestrais, se eles, em meio a intempéries, predadores, o desconhecido, a escassez de recursos, se brincavam mais pelas manhãs ou pelas noites, e do quê. Muitas vezes também, me pego pensando como deve ter sido a primeira vez das coisas: quando foi o momento original de giramos em roda e se deu vontade de cantar; ou o dia que alguém ousou entrar no mar e se este sentiu-se mais perto dos deuses; quem foi que escreveu o primeiro poema e se este, dizia algo sobre a chuva.
Há algumas coisas que tem gosto de alegria primitiva. E devem mesmo ser. Jogar os jogos mais simples entre os nossos, costuma ser uma delas.
Lucia, uma amiga argentina, me mostrou afoita a conversa entre ela e alguém quem ela estava amando: “Ontem lhe escrevi: ‘vas a trabajar mañana?’ e assim, o jogo começou, desde então, estamos nos comunicando apenas com palavras que tenham unicamente a vogal A.” Nesse momento, diante de tanta simplicidade e alegria, acendeu em mim um fascínio e curiosidade: “como nascem as brincadeiras? como jogos tão simples nos fazem tão feliz?”

Fiquei refletindo sobre a fineza dos jogos milenares e lembrei de Jokenpô. As primeiras referências a ele estão na obra chinesa: Wazuzu, que data de 1600 a.C.*(*ANTES de Cristo), ou seja, de pelo menos, 3624 anos atrás! Não é impressionante!? Pensa, para um jogo atravessar tantos milhares de anos, ele deve alcançar uma proeza de síntese, estruturando uma base tanto elementar quanto instigante, na qual, mesmo que mudemos alguns símbolos, a mensagem ainda atravessará ilesa. E isso me parece a apuração de um milagre, a criação de um pequeno mito.
Através desses jogos que cruzam milênios, através dessas brincadeiras “sem sentido” que intuitivamente nos identificamos e nos comprometemos com um desejo de compartilhá-las, vamos criando e vivendo efêmeros submundos, que nos ajudam a perceber nossa tão ilógica realidade, ou, pelo menos abafar a angústia que é tentar acomodar-se no mundo.
Houve um filósofo que encontrou no jogo do teatro, uma maneira de ter prazer e jogar com a falta de explicação, com o absurdo da vida, ele foi Albert Camus, e disse: “Não sei se este mundo tem um sentido que o ultrapassa. Mas sei que não conheço esse sentido e que por ora me é impossível conhecê-lo.” (…) “Daí o gosto pelo teatro, pelo espetáculo, onde lhe são propostos tantos destinos que lhe oferecem a poesia sem lhe impor sua amargura.”
Pelo teatro, pelo jogo, pela simulação, podemos viver experiências significativas de perder e de ganhar, de influenciar e de ser manipulado, de rejeição e pertencimento, de alianças e rivalidades, e inclusive, de viver e de morrer. É surpreendente como brincar pode ser um recurso valioso para conseguirmos banalizar sentimentos paralisantes como medo, vergonha, humilhação e culpa, basta estarmos comprometidos um pouco além do nosso ego, comprometidos com a ideia de que errar e perder podem fazer parte do prazer que é jogar um absurdo acordado. E, perceber que outros desfrutam com você, é um júbilo mágico, é o milagre.

Veja bem, eu sou monogâmica com a ciência e não pretendo soar hiper relativista, e muito menos otimista com nosso poder de transformar a realidade que vivemos, no entanto, muito dessa nossa realidade nada mais é que um pacto (em geral, involuntário) entre os participantes de se comprometerem com as regras (muitas vezes, absurdas) dessa cultura e política que criamos. Assumir esse caráter de jogo em alguns momentos, pode nos ajudar a relaxar diante das tantas banalidades, as quais nós tendemos a encarar como ameaças monstruosas.
Brincar é ancestral, é um recurso usado por muitas espécies tanto para ensinamentos de caça ou estratégias de fuga, quanto para o desenvolvimento motoro e social dos filhotes, no entanto, na vida adulta, de nós, animais, as brincadeiras tendem a diminuir drasticamente. Enquanto humanos, não precisamos mais caçar ou defender-nos de predadores, muitas das nossas brincadeiras então, têm acima de tudo, um viés social e político.
Bom, lhes conto uma anedota de algo que vivi e que muito me anima, sobre pequenos conflitos envolvendo pessoas que exercitam um espírito lúdico.
Em setembro desse ano, eu, Babette, Dago e Fajis fizemos uma cicloviagem, somos amigos e fluímos muito bem enquanto grupo. Em algum momento, fomos ao mercado comprar suprimentos para lanchinhos do dia seguinte: pão com pasta de amendoim e geleia (fácil e calórico para termos energia no pedal!). É surpreendente como em grupo vivemos várias decisões políticas, e nesse dia, eu estava especialmente atenta a elas.
Primeiro pequeno impasse: Dago não gosta de pão de forma, que foi o primeiro pão que eu e Fajis pegamos, já que fazia parte óbvia da nossa cultura e imaginário. Isso foi facilmente resolvido com o próprio Dago sinalizando e já trazendo um pão da padaria do mercado, mais barato e bem mais gostoso. Resolução um: check, sem tempo para argumentações, reclamações ou verbalização de estranhamentos.
Pão resolvido, olhei para o grupo e disse: “Eu pego a geleia, qual sabor vocês querem?”. Instantaneamente, a voz de Babette e Fajis se sobrepuseram, a dela firmemente evocando “framboesa” e a dele “morango”. Aqui, entra meu senso social, onde afoita, por um minuto, penso que talvez seja meu papel escolher um lado para fortalecer e desfazer esse conflito pela via numérica, porém, uma qualidade desses meus dois amigos, me faz desnecessária: eles sabiam brincar.
![Film] The Taste of Tea, de Ishii Katsuhito (2004) - Dark Side Reviews Film] The Taste of Tea, de Ishii Katsuhito (2004) - Dark Side Reviews](https://substackcdn.com/image/fetch/$s_!5v5i!,w_1456,c_limit,f_auto,q_auto:good,fl_progressive:steep/https%3A%2F%2Fsubstack-post-media.s3.amazonaws.com%2Fpublic%2Fimages%2Fb3c1c133-689a-4725-b6d2-57dd83fe9ae4_680x412.jpeg)
Tudo acontece muito rápido, quase imediatamente após perceberem a sobreposição de vozes e a discordância entre os dois, Fajis encara Babette seriamente e levanta a mão numa exclamação: “IMPAR!”. Eu observo e imagino que como eu, Babette vai rir, ignorar seu colega e apelar para alguma argumentação, entretanto, sem nenhum espanto, ela comprometida e com olhar grave, rebate como um golpe: “PAR”!
Impar foi a melhor escolha, e ao perder a solene batalha, Babette queixa-se sobre a superioridade da geleia de framboesa, e demostrando claramente sua frustração, ela pechincha com murmúrios e apela para argumentações, momento no qual, confesso que, por culpa e moral dessa nossa realidade, eu cederia mesmo com a vitória em mãos. Porém, confiante no universo do jogo, Fajis empodera seu lugar de glória, assume o prêmio sem vergonha ou dúvida e ri sem timidez na cara da sua adversária, que sorri de volta. Em poucos segundos, ambos digerem a decisão e se entreolham, com diversão e intimidade: era o dia da geleia de morango.
Eu me deleito com a seriedade de ambos nessa resolução lúdica que encontraram para um pequeno conflito rotineiro, e isso é uma outra forma de se fazer política, de criar um microcosmos e organizar decisões. Na idade adulta, somos incentivados ao ápice do lógico, no entanto, pode ser um alívio notar que há caminhos alternativos, os quais podem ser muito mais divertidos, mesmo que ainda vulneráveis e desafiadores.
Sorriu e penso, que é aí que quero estar: entre os entusiastas* das pequenas partidas, entre os jogadores de um RPG da vida real, entre os torcedores do ímpar ou par, entre os profissionais do jokenpô. Enfim, entre aqueles que exercitam a habilidade de pôr-se vulnerável as derrotas, dispostos a jogar na dissimulação da vida, a brincar nas interações mais simples, mesmo quando ninguém tocou o sinal do recreio.
*“Me recuso a identificar-me como designer, ou fotografo, ou tatuador, ou o que seja. EU SOU UM ENTUSIASTA! É isso que quero ser, um entusiasta da vida.” disse meu grande amigo Gracinha, enquanto segurava uma NERF (arminha estilo transformer colorida que atira balas de isopor).

curiosidade: Em 2006, um juiz federal da Flórida ordenou que as partes opositoras em um longo julgamento decidissem sobre um depósito judicial usando Pedra, Papel, Tesoura. A decisão foi considerada ofensiva, e levada a instâncias superiores, anulada. (encontrei muitos outros registros de decisões importantes e difíceis que foram delegadas ao jogo e a sorte)
bibliografia:
• https://www.japanhousesp.com.br/artigo/jankenpon-conheca-a-historia-do-famosos-jogo/
• https://pt.wikipedia.org/wiki/Pedra,_papel_e_tesoura


nesse fim de ano joguei marco polo com meus primos, brinquei de mímica com meus tios e minha avó e também vi o hermeto pascoal comandar uma orquestra de brinquedos de criança. brincar é bom, só precisamos lembrar disso ❤️